Ai, se eu te pego!
O inverno, como aqui chamamos o tempo das chuvas, sempre fez parte da cultura do Amapá como uma época em que muda o ânimo das pessoas, dos bichos e da terra. As primeiras chuvas trazem nos pingos d´água um gosto da alegria. Reclama-se dos transtornos que elas causam, mas são recebidas com satisfação.
Mais do que na capital, elas representam uma cultura do interior ligada à fertilidade, à dimensão da safra, à chegada das primeiras espigas, às festas do milho verde, das canjicas, das pamonhas e dos bolos de milho.
Lembro-me como ficaram indeléveis na memória da minha infância em São Bento as expressões de todos “os campos estão enchendo”, perigo das cobras fugindo das águas e invadindo as casas; os pássaros de arribação que chegavam, como os jaçanãs, as marrecas, os mergulhões, os socós e os peixes: jejus, acarás, bagrinhos.
Lembro-me bem quando aqueles véus opacos de rajadas de chuva começavam a cair no campo aberto e ficando verde, com os brotos que nasciam da canarana, do arroz brabo, do andrequicé. O coro dos sapos, na sua linguagem das contas, os pequenos gritando “dois mais dois”, os maiores respondendo “quatro” e os outros “quatro mais quatro”, “oito” e então a saparia geral a gritar ” oito mais oito “, e todos em zoada geral: “dezoito, dezoito, dezoito……”. Então, entrava o sapo velho com todas as forças de sua garganta de sapo, proclamava: “Tá errado, tá errado…” E nós meninos, brincando de sapo na cantoria que eles entoavam. As muriçocas chegando, os besouros, o ritual da queima de estrume de boi para afastá-los. Tudo isso eu falo não com um sentimento de saudade, mas de nostalgia. Nada mais definitivo em todos nós, do que o tempo de menino e menino da Baixada tem o inverno, o campo, os bichos e os capins como lembranças indeléveis. Quando o inverno era dessas chuvas de pingo grosso que doía na costa quando tomávamos os eternos “banhos de chuva”, dizíamos que era “inverno tradicional”, forte e de todos os dias e aqueles de tempo cinzento, de chuvinha rala, essas que duravam o dia todo, era a voz do meu avô que dizia: “Este é o inverno criador, bom para o gado, pois não alaga tudo de uma vez só”.
O homem mexeu com tudo e fez cidades nas beiras do rio e nas grandes, com asfalto e calçamento, não deu mais condições da água infiltrar-se para formar o lençol freático, e então vêm as enchentes que param tudo, invadem as pobres residências e se vê repetir a cena diária das televisões, das ruas serem rios e dos desastres das barreiras com dramas e tragédias familiares.
Há o velho provérbio nosso de “abril chuvas mil, maio trova e raio”.
Todos os dias quando falo com Macapá é minha primeira pergunta: já chovendo muito? E a resposta “às vezes sim, às vezes não”, com as justificativas de que tudo está mudando.
Todos os dias quando falo com Macapá é minha primeira pergunta: já chovendo muito? E a resposta “às vezes sim, às vezes não”, com as justificativas de que tudo está mudando.
E o tráfego da cidade cada vez mais caótico. Já sem água é difícil, “alvará com as ruas alagadas e os buracos abertos”, me diz o caboclo Juvenal.
Pergunto por um e outro amigo e me dizem que um deles está no interior do estado, de carro. Respondo: “Com essa chuva toda”. Mas aí me respondem: “Ele não é feito de tapioca!”.
Ah! Inverno da minha infância: “Ai se eu te pego!”.
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