Apesar de ainda jovem, o advogado amapaense Danilo Silva demonstra muita maturidade ao abordar com muito realismo aquilo que muita gente insiste em esconder no país: o racismo. Ele acaba de assumir a presidência da Comissão da Verdade Sobre a Escravidão Negra no Brasil, um colegiado que passa a fazer parte das seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Ele foi entrevistado pelo jornalista Cleber Barbosa, durante o programa Conexão Brasília, pela rádio Diário FM, ocasião em que falou abertamente sobre o problema que ele mesmo diz já ter sentido. Na pele. Para o advogado, a primeira dificuldade é admitir que o preconceito racial ainda existe e precisa ser combatido, com muito diálogo e informação. Os principais trechos da conversa o Blog publica a seguir.
Cleber Barbosa
Da Redação
Diário do Amapá – O senhor acaba de ser nomeado para presidir a Comissão da Verdade Sobre a Escravidão Negra na OAB local, um grande desafio, não é?
Danilo Silva – Exatamente. Essa comissão é bem nova na OAB. No Conselho Federal ela tem apenas dois anos e aqui no Amapá ela está em fase de implementação, ainda. Ela já foi criada, fui nomeado presidente e agora estamos formando a comissão, a ser composta por vários advogados, por membros da sociedade civil e também do Judiciário e do Ministério Público que queiram contribuir com esse trabalho.
Diário – E como ela surgiu? Qual é o mote de sua atuação?
Danilo – Tal como foi a Comissão da Verdade, para investigar os crimes na Ditadura Militar, crimes de torturas, homicídios, essa Comissão da Verdade na OAB surgiu com o intuito de investigar quais crimes, quem cometeu esses crimes e onde foram cometidos esses crimes que possibilitaram a escravidão negra no Brasil.
Diário – Pelos dados que o senhor dispõe, dá pra dizer onde e quando surgiu a escravidão?
Danilo – Bom, a escravidão existe desde que o mundo é mundo, em vários continentes, com os hebreus, com os chineses, enfim. Já a escravidão negra iniciou com as grandes navegações, na época da corrida entre Portugal e Espanha. Quando Cristóvão Colombo chegou à África, ele viu que as pessoas tinham a pele escura e se espantou, pensando inicialmente que era por questões geográficas que as pessoas tinham pele negra. Levantou a teoria de que eram serem humanos primitivos e a partir daí iniciou-se o tráfico intercontinental de escravos, se espalhando pelo mudo. A escravidão negra foi a maior barbárie que já ocorreu na história da humanidade.
Diário – E, claro, acabou chegando ao Brasil com os portugueses, é isso?
Danilo – Não só com os portugueses, mas também com os espanhóis e todos os mercadores europeus de escravos, como holandeses, franceses. A África, em vinte anos, foi noventa por cento colonizada.
Diário – No Brasil coube à princesa Isabel abolir a escravidão, mesmo que muitas pessoas questionem o cenário em que isso se deu, não é?
Danilo – A princesa Isabel tinha apenas dezenove anos de idade quando assinou a Lei Áurea, num momento em que havia vários movimentos abolicionistas, numa pressão especialmente dos países que já haviam abolido a escravidão e estavam atrás de mercados consumidores. Vale ressaltar que esses movimentos abolicionistas internos não eram antirracistas, pois existiam muitos outros que eram.
Diário – Qual seu pensamento sobre a políticas de cotas para negros em vestibulares e também concursos públicos, pois há quem critique dizendo que a reserva de cotas já é algo discriminatório?
Danilo – Bom, como é de se esperar somos a favor, claro, pois entendemos ser uma política afirmativa, e afirmativa de direitos, pois se enquadra na Constituição como promoção da igualdade racial. O principal argumento de quem é contra, e que a gente escuta muito por aí, é dizer que aprovar as cotas é como se estivesse declarando publicamente que o negro é incapaz. Ora, essa teoria cai por terra a partir do momento que a gente pega os dados dos estudantes que ingressaram na universidade pública através da política de cotas. A taxa de evasão escolar é muito menor do que os alunos não cotistas. As notas são melhores, o esforço e a produção são maiores também, ou seja, a gente sabe que não existe diferença biológica entre um negro e um branco, não existe diferença intelectual. A grande fundamentação das cotas é a diferença de condições, pois a maioria afrodescendente é pobre e não tem as mesmas condições que a maioria eurodescendente, de pele clara e de classe média ou alta.
Diário – Há uma dívida histórica com a população afrodescendente.
Danilo – Gosto de citar sempre o exemplo do juiz federal William Douglas, chamado o mago dos concursos, que durante muito tempo foi contra [a política de cotas], mas que hoje é a favor. O que fez ele mudar de opinião? Ele é professor voluntário nesses cursinhos pré-vestibulares para pessoas carentes e viu que a maioria é negra. Ele publicou um artigo sobre isso, explicando as razões para ter mudado de opinião. Disse ter visto o esforço dessa população de acordar cedo, pegar ônibus, ir muitas vezes com fome só para estudar, enquanto que a filha dele que mora bem, uma boa estrutura, tem de tudo, possui muito mais condições de ascender na vida.
Diário – O senhor já tinha uma história de militância no movimento negro no Amapá?
Danilo – Não tinha não, apesar de ser simpatizante desde sempre, apesar de sofrer violência racial desde sempre, é uma coisa incomum que todo negro tem essa vontade, essa garra de lutar e mudar isso. A oportunidade que eu vi veio depois de me profissionalizar, me tornar advogado, enfim, cheguei à conclusão de que poderia contribuir para mudar esse cenário. É muito fácil a gente ficar em nossa zona de conforto, ficar em casa no sofá vendo os outros fazerem as coisas, enfim, poucas pessoas têm essa iniciativa de virar protagonista de mudanças. Então veio essa oportunidade com a Comissão dentro da OAB e ela tem um trabalho muito importante para ser feito pelo país, então o Amapá não poderia ficar de fora.
Diário – Que tipo de violência racial o senhor já foi vítima?
Danilo – Cotidianamente a gente sente a presença do racismo. Quando a gente entra num mercado, por exemplo, quando o segurança fica andando atrás de você; quando a gente entra numa loja e as pessoas não te tratam bem, a não ser quando você está em vestido. Nunca me esqueço quando uma vez em Castanhal, no Pará, quando caminhava numa tarde pelas ruas do comércio quando percebi que as pessoas iam fechando as portas das lojas; depois na faixa de pedestre via as pessoas levantando o vidro dos carros quando eu me aproximava, enfim, nesse dia eu me senti muito mal realmente.
Diário – O que precisa ser feito para se eliminar o racismo doutor?
Danilo – Bom, a gente precisa desconstruir o mito da democracia racial que existe no Brasil, que é de afirmar que negros e brancos convivem harmoniosamente, de que não existe racismo no país; e que o negro tem ascensão social igualmente ao branco; enfim, o que não é verdade.
Diário – Ou seja, primeiro é preciso admitir que o problema existe?
Danilo – É, no Brasil as pessoas querem admitir a inexistência do racismo e pior do que isso, não admitir que é preciso dialogar sobre isso, as instituições, as escolas, as famílias, enfim, acreditam veementemente que não precisam debater sobre isso. É uma realidade que a gente precisa mudar trazendo para a ordem do dia o debate sobre discriminação, racismo, políticas de cotas, pois o que falta para a maioria da população realmente é informação. O combate ao racismo e a promoção da igualdade racial hoje tem força de emenda constitucional no Brasil, pois foi aprovada nas duas casas do Congresso Nacional, em dois turnos e por maioria absoluta. É aí que entram as políticas afirmativas de direito que eu me referi no começo, cujo objetivo é incluir os negros em outras classes da pirâmide social.
Perfil…
Entrevistado. O advogado Danilo José Martins Silva tem 26 anos de idade, é amapaense nascido em Macapá. É casado com o biomédica Andréia Barbosa, com quem espera seu primeiro filho para março. É formado em Direito pela Faculdade Estácio de Macapá, especialista em Direito Previdenciário. Foi estagiário da Advocacia Geral da União, na Procuradoria da Fazenda e no Departamento Previdenciário; também estagiou no Tribunal de Justiça do Estado do Amapá, no Juizado Especial Norte; é músico e compositor, tendo inclusive tocado na noite antes da formação acadêmica. Acaba de ser nomeado para presidir a Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil, colegiado que está sendo implantado em todas as Seccionais da OAB.
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