José Sarney
Foi Samuel Kernell, no seu ensaio sobre a "Presidência e o Povo'', quem cunhou a expressão "paradoxo moderno'', que consiste em os detentores de mandatos executivos eleitos abandonarem os canais institucionais e utilizarem o apelo às ruas, desestruturando o sistema representativo. Isto é, um presidente apertado por uma maioria congressual ou por dificuldades partidárias tende a trabalhar contra a legitimidade parlamentar. Carter, acusado de violar o sistema representativo com essa prática, sendo o presidente americano que no passado mais a usou, respondeu que ele também "era deputado distrital'', porque, como presidente, era votado em todo lugar. A técnica era manter o Congresso sob pressão. Mas essa política de apelo às massas só tem resultado porque um instrumento científico de aferição da opinião pública foi utilizado como decisivo instrumento de legitimidade: a pesquisa.
A grande crise que vem aí, depois desse fracasso da globalização financeira, da economia neoliberal especulativa, vai ser a democracia representativa. A legitimidade democrática vinha dos mandatos periódicos, durante os quais os eleitos representavam o povo, sem contestação, para em seu nome tomar decisões. Hoje, isso é apenas formal. A legitimidade do dia da eleição desaparece ou, como dizem os cientistas políticos, envelhece. A velocidade com que se processa o fato político e o tempo real das comunicações fazem que, diariamente, os mandatários tenham necessidade de receber o batismo da legitimidade. E quem o faz? A pesquisa de opinião pública. A grande disputa é saber quem representa o povo: a mídia que expressa a opinião pública ou o político que foi eleito? Essa resposta somente pode ser dada pelas sondagens. Elas quantificam as preferências públicas que estão sintonizadas com os políticos. Assim, a democracia representativa, como foi concebida, está ferida de morte. Tem que surgir um novo modelo. A eleição se confunde com pesquisas de opinião e, como acontece agora, quando as duas se afastam, não se sabe onde vai parar a legitimidade de uma e de outra.
Esse fato já vem crescendo há muito tempo. Desde Truman, os presidentes americanos adotaram o sistema de pesquisas mensais. Ele entrou com 87% no governo e saiu com 32%. Carter, com 66%, terminou com 33%. Uma série histórica mostra que os presidentes que tiveram maior queda durante o governo foram os que entraram com pesquisas mais altas. Reagan, o campeão, entrou com 51%, saiu com 41%, só perdeu dez pontos.
A gritaria contra os nossos institutos de pesquisas não tem muito fundamento. Eles trabalham dentro de fórmulas estatísticas precisas e servem para aferir tendências. No final da apuração, todos os números, com as respectivas margens de erro, são confirmados. O que se deve pensar não são os números, mas o que as pesquisas representam de arrasador para o sistema representativo. Nesta eleição havia pesquisa para todo lado, todos queriam desvendar o dia seguinte da apuração. O que a legislação deve exigir é o cadastro de pesquisadores, a idoneidade dos mesmos, exigências para estabelecer fiscalização permanente da atividade e vigilância contra distorções e fraudes. Proibi-las de ser publicadas ou acabar com elas é impossível. Vieram para ficar.
Os institutos estão pagando caro por uma pressa em anunciar resultados logo após o encerramento da votação. A pesquisa de boca-de-urna, a meu ver, não obedece a rigor científico. É simplesmente palpiteira.
José Sarney, senador (PMDB/AP), ex-presidente da República.
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